Ah, sinto uma falta profunda… não de textos novos Fernando Pessoa – até porque a obra dele é imensa e toda vez que leio percebo algo novo – mas da habilidade singular que ele tinha de ser tantos, tão naturalmente. Fernando Pessoa, não contente em ser gigante em unidade, decidiu ser muitos.
Cada heterônimo, uma vida inteira, uma alma distinta, mostrando facetas diversas da humanidade. Álvaro de Campos, por exemplo, era o rebelde, o modernista que vivia entre a euforia e a desolação, seus poemas um turbilhão de sentimentos e desejos. Ricardo Reis, o estoico, com sua poesia clássica, ponderada, uma ode à medida e à contenção. Alberto Caeiro, o mestre da simplicidade, via o mundo com a clareza e a inocência da natureza. E Bernardo Soares, o ajudante de guarda-livros em Lisboa, introspectivo, vivendo no limiar entre a realidade e a fantasia em seu “Livro do Desassossego”.
E eu? Lutando para manter um único eu, monótono e quase sempre monossílabico. Em “Poema em Linha Reta”, Álvaro de Campos escancara suas imperfeições com uma honestidade que me falta. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Como Pessoa conseguia? Como podia ele habitar tão confortavelmente tantas peles diferentes, enquanto eu me debato para sair da minha própria?
A genialidade de Pessoa era essa facilidade em desdobrar-se, multiplicar-se em existências diversas, cada uma com sua voz, seus desejos, seus medos. E eu aqui, me forçando a ser sempre o mesmo, preso numa constância que mais me sufoca do que me define.
Os heterônimos de Pessoa me confrontam com a minha própria inércia, a minha incapacidade de explorar as muitas camadas que sei que existem em mim, mas das quais me afasto. Ele navegava pelas tempestades internas com a maestria de quem conhece cada corrente, cada recife. E eu? Evitando navegar, temendo as águas que ele atravessava com bravura.
A coragem de Pessoa em ser múltiplo, em aceitar todas as suas facetas, até mesmo as mais contraditórias, me faz questionar minha própria autenticidade. Enquanto ele vivia plenamente cada um de seus eus, eu mal consigo expressar um. Pessoa se entregava à literatura e à vida sem reservas, enquanto eu hesito na beira, temendo o mergulho. Ah, como sinto falta dessa habilidade em mim… A habilidade de ser muitos, sem perder a essência.
Pessoa, com sua multiplicidade natural, me lembra do que eu poderia explorar em mim mesmo, se não me limitasse tanto, se não temesse tanto o julgamento, a incoerência, a liberdade. Sua genialidade me provoca, me inspira e, ao mesmo tempo, me entristece por me fazer ver o quanto sou restrito, quanto de mim fica por explorar. Fernando Pessoa viveu tantas vidas em uma só, enquanto eu mal vivo uma. Como me faz falta essa capacidade de ser muitos, essa liberdade que Pessoa tinha e que eu, tão monótono, ainda busco.