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Ontem visitei a Biblioteca Nacional de Viena, uma das maiores e mais importantes bibliotecas históricas do mundo. Conhecida por seu acervo inestimável e arquitetura impressionante.

Um prédio magnífico, com pé-direito alto. Amplos vitrais deixam a luz natural inundar o ambiente, criando reflexos dourados sobre as prateleiras e destacando a textura envelhecida dos livros. A atmosfera é quase etérea, e caminhar pelo espaço transmite uma sensação de calma reverencial, como se cada passo fosse parte de um ritual sagrado. Livros se estendem do piso ao teto.

Livros raros, sem dúvida. Muitos carregam séculos de história e conhecimento acumulado. Agora estão inertes, restritos pelas necessidades de conservação que impedem seu manuseio, como se estivessem em exibição apenas para serem admirados à distância, preservados para proteger seu valor histórico. A biblioteca lembra, em muitos aspectos, um mausoléu imperial, com suas colunas austeras e silêncio profundo. Um lugar para prestar homenagens a algo que já foi, mas já não é, como corredores vastos e frios que guardam vestígios de um passado glorioso, mas sem vida.

Desde manuscritos medievais até primeiras edições de obras clássicas. De alguns poucos, há reproduções de páginas sob redomas de vidro. Permitem apenas uma pequena amostra de seu valor, como relíquias de um passado distante. Entretanto, o valor real para os visitantes é similar ao das caixas que imitam livros e enfeitam salas. Objetos que parecem valiosos, mas cuja função é meramente decorativa.

Milhares de livros. Todos dormentes, inertes. Como se tivessem perdido o propósito original. Talvez alguns estejam quase apodrecendo, esquecidos pelo tempo. Nada resta de sua função original. Para os gregos, seriam considerados sem virtude, desprovidos de propósito. Nenhum podia ser tocado ou folheado.

Afinal, que valor tem um livro que não pode ser lido?

Pobres e podres livros antigos. Se vontade e escolha tivessem, não escolheriam desmancharem-se nas mãos inábeis de um novo leitor a permanecerem expostos para a eterna inutilidade?

20/11/2024

Tomando café pela manhã, avistei uma torre que chamou minha atenção – era um Flakturm.

Era uma edificação alemã da Segunda Guerra Mundial, usada como torre de artilharia antiaérea. Essas estruturas protegiam as cidades dos ataques dos Aliados e abrigavam civis durante bombardeios.

Blocos acinzentados, enormes, com paredes espessas e janelas estreitas como fendas. Suas superfícies eram desgastadas e cobertas de musgo. A altura imponente e a aparência fria e opressiva, confesso, me causam medo.

Construídos com concreto reforçado, projetados para resistir a bombardeios, são extremamente sólidos e difíceis de demolir. Por isso, permanecem de pé até hoje.

O povo de Viena decidiu integrá-los à cidade. Aceitar essas construções, antes horrendas, e transformar o passado em parte do presente. Resiliência e adaptação são marcas da identidade vienense.

Alguns desses blocos já não são vistos de forma negativa. Muitos foram revestidos com vidro e estruturas metálicas e ganharam novas funções: centros culturais, museus, aquários. Assim, trouxeram nova perspectiva e utilidade a essas edificações.

De um dos temidos Flakturms nasceu o Haus des Meeres – um aquário vertical com onze andares. Lá dentro, há tubarões, répteis e áreas de aves tropicais. No topo, um terraço panorâmico com vistas impressionantes da cidade.

Subi os onze andares a pé. Em cada um, havia uma atração. Até um dragão-de-komodo encontrei por lá. Cada andar era uma surpresa!

O que pensei? Que até o que é horrendo pode se tornar incrível. Basta ser “revestido” e usado da forma certa.

Viena transformou estas torres sombrias em símbolos de resiliência e criatividade. Elas agora fazem parte da vida moderna da cidade.

Flakturm. Torre antiaérea. Primeira vez que me prestei a subir, por escadas, onze andares.

19/11/2024

Estou na Áustria nesses dias, terra de Mozart. Ele era um gênio, e sua obra resiste ao tempo.

Visitei o Palácio de Schönbrunn, antiga residência da (extinta) monarquia austríaca. O palácio resistiu ao tempo; a monarquia, não.

Antes centro do poder, o palácio hoje abriga um museu. Na verdade, pode-se dizer que o palácio inteiro é um museu. Nele, plebeus como eu podem explorar as acomodações da realeza. Um destaque curioso são os sanitários reais, que mostram que reis e rainhas, considerados quase sobre-humanos, eram, no fim das contas, como você e eu.

Durante a visita ao palácio — ou melhor, ao museu —, chamou-me a atenção a prataria: linda, porém empoeirada.

Entre as salas mais fascinantes está aquela onde o jovem Mozart, com apenas seis anos de idade, tocou para a imperatriz — um fato histórico amplamente conhecido.

Pensando bem, talvez tenha sido a imperatriz quem teve a sorte de ouvir o pequeno Mozart. Afinal, sua obra o tornaria gigante, resistindo ao tempo e dando a impressão de ser eterna. Quanto à imperatriz, confesso que aprendi sobre ela ontem e, agora, enquanto escrevo, já não lembro seu nome.

19/11/2024

Você já se perguntou por que tantas pessoas dizem que não têm tempo? Frequentemente ouvimos as pessoas dizerem isso. “Falta de tempo” é a justificativa comum para tantas coisas que deixamos de fazer. Porém, muitas vezes, essa falta de tempo nada mais é do que a expressão da falta de prioridades claras e bem definidas. Afinal, se um recurso — como o tempo — é escasso, é necessário gerenciá-lo, e disso trata a economia. No entanto, quando se trata de tempo, essa gestão não é tão simples assim.

Drucker, considerado o pai da administração moderna, ensina que de todos os recursos escassos, o único que é escasso de verdade é o tempo. O dinheiro, outro recurso frequentemente assumido como escasso, na prática, é abundante. Para a maioria dos que não o tem, o dinheiro, o que falta é uma abordagem certa para “capturá-lo”.

O tempo, por outro lado, esse é escasso de verdade. Primeiro porque não é estocável. Então, limitado que é, precisa ser gerenciado. Aliás, se a economia é a ciência para lidar com o escasso, então, é coerente pensar em uma “economia do tempo”. 

Costuma-se dizer que o tempo é igual para todo mundo, mas isso não é totalmente verdadeiro. O tempo, aprendi, possui pelo menos duas medidas associadas: a duração e a intensidade, e nem todo tempo é igual. A duração é algo objetivo, mensurável e comum para todos. Neste mundo, onde a velocidade física é praticamente a mesma para todos, um minuto é sempre um minuto. Contudo, a intensidade é diferente — é particular não só de cada pessoa, mas também de cada momento.

Pense na espera de dez minutos por alguém especial. Para quem espera com ansiedade, esses dez minutos parecem uma eternidade. Mas os dez minutos seguintes, depois do encontro, passam como se fossem segundos. Agora pense em uma reunião importante no trabalho: os dez minutos antes da apresentação podem parecer intermináveis, enquanto os dez minutos durante uma discussão empolgante sobre um projeto passam voando. O que mudou? Não foi a duração, foi a intensidade do momento. O que mudou? Não foi a duração, foi a intensidade do momento. Esse exemplo nos faz perceber que um dos segredos para uma gestão eficiente do tempo está justamente no entendimento da intensidade.

Colocar mais intensidade no tempo faz o tempo render mais. Isso pode ser feito através de práticas de mindfulness, como respirar profundamente e focar no momento presente, ou desligando distrações digitais para manter a atenção plena nas atividades importantes. Mais presença no momento presente. Viver sem intensidade, ausente do presente, é, literalmente, um desperdício de tempo. Para perceber se você está vivendo sem intensidade, observe se os dias passam sem deixar marcas significativas, se há uma sensação constante de apatia ou se as atividades cotidianas parecem perder o sentido. A falta de entusiasmo e o sentimento de que o tempo apenas passa são sinais claros de que a intensidade está ausente.\

A duração pode ser a mesma para todos, mas a intensidade é o que faz a diferença entre simplesmente passar pelo tempo e realmente vivê-lo.

30/10/2024

Já reparou como tudo o que fazemos sem enxergar um valor intrínseco logo se torna um “fardo”?

Quando uma atividade é apenas um meio para se chegar a outro lugar, largamos essa atividade assim que surge um caminho mais fácil. É um “peso a menos”. O problema é que é quase impossível fazer bem feito aquilo que encaramos como um peso. Também é muito difícil encontrar prazer em algo que vemos apenas como uma carga. Ninguém gosta de “pedágios”.

Outro dia, enquanto ainda refletia sobre essa ideia, assisti ao ensaio de Jonas Kaufmann para Nessun Dorma. Era “apenas” um ensaio, mas a entrega dele e a satisfação visível em suas reações à orquestra primeiro me emocionaram e, em seguida, me fizeram pensar. Ele não estava apenas ensaiando; estava completamente presente e realmente cantando, vivendo cada nota. Kaufmann parecia guiado pelo valor intrínseco daquilo que fazia, e não por um resultado ou uma audiência.

Depois, assisti a um vídeo de Pavarotti interpretando a mesma ária. Não sei quantas vezes ele já cantou Nessun Dorma, mas há dezenas, talvez centenas de gravações dele no YouTube. Mesmo fazendo isso há décadas, sua entrega em cada registro impressiona. Gênio! Naquele vídeo, em especial, ele estava plenamente entregue, absorvido pela própria música, e isso ficou ainda mais claro em suas reações ao final. Ali estava alguém que fazia algo por paixão, pelo valor profundo e verdadeiro daquela atividade. Pavarotti, assim como Kaufmann, estava conectado com o que fazia, e essa conexão conferiram unicidade a esses dois momentos que definitivamente se afastam da rotina, do descartável.

Quando, por exemplo, estudamos apenas para garantir um emprego melhor, o estudo logo vira uma atividade chata e desgastante, que exige mais esforço do que o necessário. Quando o estudo não é valorizado pelo aprendizado em si, ele se torna um peso. A mesma lógica vale para os exercícios físicos: se a única razão para fazer é manter ou melhorar a forma, a prática rapidamente se esvazia. Quem não encontra prazer e finalidade direta na atividade acaba por abandoná-la ao primeiro sinal de oportunidade.

O trabalho também não foge dessa regra. Se trabalhamos apenas para ganhar dinheiro e fazer coisas fora dali, o trabalho sempre será um peso. Sem perceber valor intrínseco no que fazemos todos os dias, o trabalho se torna uma simples troca de tempo e energia por dinheiro, se afastando da nossa satisfação. Torna-se algo enfadonho e nos faz esperar a “hora feliz”, geralmente nas sextas, depois do que se deduz foi uma “semana menos feliz”.

É por isso que se torna tão difícil sermos bons em algo se não enxergamos valor real naquilo. Esse valor é o que nos leva a ir além do mínimo, a nos dedicar de verdade e a crescer. O primeiro passo para fazer algo melhor é aprender a valorizar a própria atividade, independentemente do que ela possa trazer. Quando encontramos sentido no que fazemos, pelo simples prazer de fazer, nossa motivação é mais genuína, o processo mais leve e os resultados mais consistentes.

A chave, então, está em mudar o foco. Quando passamos a valorizar o que fazemos pelo próprio prazer de fazer, transformamos obrigações em escolhas e pesos em fontes de satisfação.

26/10/2024

Lembro-me do filósofo que chorava ao ver um rio, não por causa de sua beleza, mas porque sabia que nunca mais veria aquele mesmo rio novamente. A água que passava diante dele, por mais que parecesse a mesma, era outra a cada instante. Assim como ele, também olho para mim e percebo que não sou mais a mesma pessoa de antes. Essa mudança, que é inevitável, não me faz gostar mais da versão atual de mim do que daquela que existia antes. Pelo contrário, de certa forma, choro como o filósofo, por não ser mais quem fui, por deixar algo de mim para trás ao longo do caminho.

Nas minhas relações, percebo que, assim como mudei, as expectativas ao meu redor também mudaram. Às vezes, sou cobrado por carências que antes eu supria naturalmente, e que, agora, por causa das transformações pelas quais passei, já não consigo atender da mesma forma. Do mesmo modo, também busco nos outros o atendimento de carências que eu agora tenho, e que antes não faziam parte de mim. Esses desencontros revelam como as mudanças pessoais impactam diretamente os relacionamentos, e como é difícil conciliar quem somos hoje com as expectativas do outro, que ainda se lembra de quem fomos.

Infeliz daquele que depende do outro para ser feliz. A dependência emocional cria uma prisão invisível que limita nosso crescimento e autonomia. Quando baseamos nossa felicidade na presença ou validação de outra pessoa, deixamos de ser protagonistas da nossa própria vida e nos tornamos reféns de algo que não podemos controlar, o que inevitavelmente gera sofrimento e frustrações. A verdadeira autonomia emocional exige que encontremos dentro de nós a fonte de nossa felicidade, sem depender exclusivamente do outro para nos sentir completos. A felicidade genuína, como apontado por Alfred Adler, não pode ser encontrada em relações verticais, onde há superioridade ou inferioridade. Quando nos colocamos acima ou abaixo do outro, surgem problemas. Ao depender do elogio ou da crítica, nos colocamos em uma posição de submissão, esperando a validação externa para definir nosso valor. Da mesma forma, quando elogiamos ou criticamos com o ímpeto de corrigir o outro, assumimos uma posição de superioridade, o que também desestabiliza as relações. A verdadeira felicidade reside em estar “ao lado”, em relações horizontais, onde há igualdade, respeito mútuo e colaboração, sem a tentativa de controlar ou ser controlado.

A modernidade, com sua facilidade de conexão e suas múltiplas formas de relacionamento, torna tentador e fácil estabelecer e manter relações que rapidamente se convertem em cativeiros afetivos. Essas relações, inicialmente promissoras, podem facilmente se transformar em prisões emocionais quando há a dependência mútua ou o desejo de controle. Se uma relação se desenvolve nesse sentido, ela precisa ser redefinida. E, se a redefinição não se mostrar possível, o encerramento, por mais doloroso que seja, se torna uma necessidade. Prolongar uma relação que nos aprisiona apenas perpetua o sofrimento e bloqueia o crescimento pessoal e emocional.

Quem nós somos pode ser explicado pelos valores que queremos desenvolver ao longo da vida e pela intensidade com que buscamos isso. Os valores que cultivamos nos moldam, e é esse processo constante de busca e transformação que nos define. O desafio é manter nossa identidade em constante evolução sem permitir que ela se perca ou se dilua nas expectativas e demandas externas. O equilíbrio entre quem somos hoje e o que desejamos nos tornar é o que dá profundidade às nossas relações e nos mantém firmes em meio às mudanças da vida.

A vida afetiva tem sua regra: só podemos dar de nós o que de nós já conquistamos e dispomos. A transferência implica em posse; ninguém pode dar o que não tem, por mais que queira. O cativeiro afetivo é destino certo para todos aqueles que resistem a assumir o protagonismo de suas vidas.

Uma relação, de qualquer natureza, deixa de ser saudável quando uma das partes se responsabiliza ou é responsabilizada pelo sentir do outro. Não é um desencorajamento para a sensibilidade ou para a empatia, mas um convite ao autocuidado. Esse conceito de equilíbrio emocional é essencial para que as relações não se transformem em prisões emocionais, onde o controle e a dependência suprimem a liberdade e o crescimento mútuo.

O primeiro passo para a libertação está na retomada da identidade individual. Em contextos de crise, voltar-se para a relação fundamental consigo mesmo e com o Criador é o alívio do fardo. Somente ao recuperar nossa essência e nos reconectar com o que realmente somos, conseguimos fortalecer nosso núcleo interno e reencontrar o equilíbrio. Essa reconexão é vital para que possamos resistir ao impulso de nos dissolver nas demandas e expectativas dos outros, especialmente em um mundo caracterizado pela “liquidez” das relações, como descrito por Zygmunt Bauman.

Para que possamos nos relacionar de forma plena, é necessário termos um núcleo interno forte e bem delimitado. Bauman nos alerta sobre os perigos de uma modernidade líquida, onde as identidades e os relacionamentos são instáveis e facilmente dissolvidos. Quando nosso núcleo é fluido, sem forma definida, corremos o risco de fundir nossa identidade ao coletivo, perdendo o sentido de quem somos. Sem esses limites, deixamos de existir como indivíduos e nos tornamos apenas reflexos das expectativas e demandas externas. É essa “liquidez” que torna as relações efêmeras e superficiais, enquanto a solidez de um núcleo forte nos permite manter nossa individualidade e criar vínculos mais profundos.

A verdadeira liberdade emocional e espiritual está diretamente ligada à capacidade de conhecer a si mesmo e viver de forma autêntica. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). Isso significa que, tanto no campo espiritual quanto nos relacionamentos, só podemos crescer plenamente quando não estamos presos às expectativas e emoções alheias. Fortalecer nosso núcleo interno é o que nos permite nos relacionar com o outro sem perder nossa própria essência. Em um mundo líquido, onde as fronteiras entre o “eu” e o “outro” são constantemente diluídas, é ainda mais importante que essas delimitações sejam claras e firmes.

O amor verdadeiro, por sua vez, exige que saibamos equilibrar o cuidado por nós mesmos e pelos outros, como ensina a máxima “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39). Esse equilíbrio só é possível quando os limites pessoais estão claros, permitindo que o cuidado com o outro não venha à custa da nossa própria identidade. Relações saudáveis são construídas quando ambos mantêm seus núcleos individuais fortes, permitindo uma troca autêntica e não a fusão que leva à perda de si mesmo. Quando os indivíduos têm limites bem definidos, há espaço para o crescimento mútuo e não para a dependência emocional que caracteriza muitas das relações líquidas da modernidade.

A interpretação popular da frase “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, do clássico O Pequeno Príncipe, muitas vezes encoraja laços de dependência emocional, nos quais uma pessoa se sente responsável pelas emoções do outro. No entanto, cada um deve assumir a própria vida e emoções, respeitando os limites do outro e os seus próprios. “Tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16:24) é um chamado para assumir essa responsabilidade individual, garantindo que nossos limites sejam respeitados e não ultrapassados em nome de uma falsa conexão ou dependência.

Bauman descreve que, na modernidade líquida, a falta de solidez nas relações leva as pessoas a buscar constantemente preenchimento externo, o que resulta em vínculos frágeis e temporários. Em um mundo apressado e desconectado do autoconhecimento, muitas vezes buscamos no outro aquilo que nos falta internamente, o que resulta em desencontros e expectativas não correspondidas. Quando nosso núcleo é fluido, tentamos preencher nossos vazios fundindo-nos aos outros, o que inevitavelmente leva a frustrações. Relações saudáveis requerem que sejamos sólidos em quem somos, dedicando-nos ao “artesanato” da construção afetiva, que exige tempo, paciência e esforço. Esse trabalho de autodefinição e autoconhecimento é o que fortalece os laços e evita a dissolução de nossa individualidade em um mundo líquido.

Além disso, o perdão é uma ferramenta fundamental para manter nossos limites intactos e nossa paz interior. “Perdoai, e sereis perdoados” (Lucas 6:37) lembra que o ato de perdoar é uma maneira de curar a si mesmo, libertando-se das amarras emocionais que podem nos aprisionar em ciclos de dor. Ao perdoar, também reforçamos nossos limites, permitindo que nossas relações sejam reconstruídas sobre bases mais saudáveis.

Portanto, assumir o protagonismo da própria vida, definir claramente nossos limites e reconhecer as responsabilidades emocionais de cada um são essenciais para evitar o cativeiro afetivo. Somente com um núcleo forte e bem delimitado podemos construir relações baseadas na liberdade, no respeito mútuo e no crescimento, sem perder a nossa essência no processo. Ao nos reconectarmos com nós mesmos e com o Criador, encontramos o alívio necessário para enfrentar as crises e nos libertarmos emocionalmente, escapando da liquidez da modernidade que dissolve identidades e laços.

Assim como o filósofo que lamentava a impossibilidade de ver o mesmo rio duas vezes, também lamento as versões de mim que não mais existem. Elas fluíram, como as águas, levando consigo parte do que fui. E, embora eu aceite o curso natural das mudanças, há em mim uma nostalgia pelo que se foi, por quem eu fui — e por quem, nas minhas relações, já não posso ser.

09/10/2024